(Vemos, atualmente, no Brasil, uma tendência a se considerar "intolerante e agressivo" quem não concorda com a gente. Não vou alongar o assunto aqui, mas preciso desta introdução para esclarecer o motivo das ressalvas com que inicio. Acredito que a diversidade de idéias é uma coisa boa para a sociedade e que discutir um tema não significa, necessariamente, tentar fazer com que as outras pessoas mudem de ideia e concordem comigo. Ressalvas feitas, prossigo.)
Esporte é uma coisa fantástica, ajuda a formar cidadãos, ensina a viver e trabalhar em equipe, mostra a importância de todos em uma equipe e ensina valores como respeito aos adversários, humildade na derrota, mas sem perder a auto-estima e svitória sem arrogância, coisas importantíssimas na vida!
Apesar disso, é preciso dizer que, de algum tempo para cá, vejo no futebol um caráter extremamente "deseducativo". Não desejo a extinção do futebol, mas, como cidadão, desejo profundamente que este volte ao seu devido lugar na nossa cultura.
Vejamos algumas das coisas que percebo que o futebol "ensina" dentro e fora do campo. Para isto, é preciso partir do ponto de vista de um jovem (e de alguns adultos que conheço) que ainda não tem seus valores e anseios de vida completamente definidos. O que aprendemos (ou, mais relevante, o que os jovens aprendem) com as atitudes dos jogadores-estrelas, com o comportamento das torcidas e com a ênfase da maios parte da cobertura jornalística do futebol?
Vejamos alguns exemplos curiosos.
La Mano de Dios. Num jogo da seleção argentina contra a seleção da Inglaterra, pelas quartas-de-final da Copa do Mundo de 1986 (disputada no México) Maradona fez um gol descrito da seguinte forma na Wikipedia (1): "Após o zagueiro Steve Hodge chutar a bola para o alto, Maradona correu na direção do goleiro Peter Shilton e, com o punho cerrado, pulou e com a mão jogou a bola por cima do adversário, vinte centímetros mais alto. O árbitro tunisiano Ali bin Nasser validou o gol, revoltando todo o time inglês." Diante das perguntas da imprensa ao final do jogo sobre o gol polêmico, no mínimo, Maradona respondeu: “Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios” ("Marquei-o um pouco com a cabeça e um pouco com a mão de Deus", em tradução livre.) Na Copa do Mundo da Itália, em 1990, Maradona re-editou "la mano de Dios), não para marcar um gol, mas para impedir um gol da seleção da antiga URSS. O árbitro sueco Erik Fredriksson não marcou a falta. Foi apenas em 2005, 19 anos depois da partida contra a Inglaterra, que Maradona admitiu que o golde 1986 contra a Inglaterra foi marcado com a mão. O gol de mão do Maradona, é até hoje festejado com frases do tipo "ele pode fazer gol de qualquer jeito", porque é o melhor do mundo. Há muitos outros exemplos que acho desnecessário citar. Gosto deste, porque é representativo de todo um contexto. A forma com que a Argentina conquistou a Copa de 1986 é assunto controverso até hoje(2).
A pergunta que se impões é: “Quantas vezes defendemos um time, mesmo contra as regras do jogo e contra qualquer senso de justiça, espírito esportivo, fair play, etc.?” Isso, naturalmente, cada um só pode responder por si. Apesar disso, mais que interessante, acho que é uma pergunta fundamental.
Oruro, Bolívia, fevereiro de 2013. Durante jogo válido pela Copa Libertadores da América (ah, a ironia deste nome!) entre Corinthians e San José da Bolívia, a torcida do Corinthians dispara um sinalizador Naval em direção à torcida do San José, atingindo o menino Kevin Beltram Espada. O assassinato do garoto pela torcida do Corinthians resultou na detenção de um grupo de torcedores que portavam sinalizadores semelhantes em suas sacolas. Um personagem demosntrou a devida lucidez após o jogo. Tite, o técnico do Corinthians, honrosamente demosntrando sua lucidez e seu senso de prioridades, declarou: "Não se vence a qualquer custo. O esporte tem outro sentido. Desculpem-me. Sei que o que vou dizer não vai tirar a dor de ninguém. Estamos muito sentidos (...) Eu trocaria o meu título mundial pela vida do menino". Afora isto, o acontecido foi tratado como se fosse uma infração de trânsito pela mídia e pelos torcedores e dirigentes corintianos, que declararam ser injusto manter torcedores “inocentes” presos num país estrangeiro. O Corinthians fez uma doação de 50.000 dólares americanos para a família da vítima. Houve também um jogo amistoso entre a seleção brasileira e a da Bolívia, cuja renda deveria ser revertida para a família. A fim de libertar os torcedotres detidos na Bolívia, a torcida do Corinthians apresentou um jovem de 17 anos que confessou ser o autor do disparo do sinalizador que matou Kevin Spada. Este jovem, que não será processado criminalmente por sermenor de idade, não estava entre os detidos pela polícia boliviana. Apesar de negar ter assumido a responsabilidade pelo ocorrido para proteger outros membros da torcida, ele recebeu, logo depois, uma bolsa de estudos completa para a faculdade que quiser cursar, por conta da torcida do Corinthians (3). Alguém acha mesmo que foi este jovem que fez o disparo? Sou só eu que penso que ele foi recrutado para "assumir a bronca" porque tem 17 anos e será tratado de acordo com o "Estatuto da Criança e do Adolescente", que prevê medidas socioeducativas, um custo pessoal infinitamente menor para ele do que seria para os torcedores adultos se fossem julgados e condenados na Bolívia?
Os "ídolos". Vejamos alguns exemplos de pessoas “bem sucedidas” que a mídia impinge aos jovens: Edmundo (tá, faz tempo), Ronaldo Nazário, Adriano, Bruno, Ronaldinho gaúcho e mesmo o Neymar, para ficar apenas nos mais evidentes. Será que estes são mesmo tão bons exemplos de cidadania e de como pessoas devem agir para serem bem sucedidas? Quantos de nossos filhos, sobrinhos, irmãos, netos, querem ser "bem sucedidos" como eles?
As torcidas. Em Belo Horizonte, vendem-se ingressos em dias separados para as duas torcidas majoritárias, porque, se grupos de torcidas rivais se encontram, se matam na pancada, literalmente. Em Belo Horizonte e em São Paulo, quando um dos times majoritários vence um campeonato ou algum jogo importante, quem não tá nem aí pra coisa, quem tem que trabalhar no dia seguinte, ou quem torce para qualquer outro time não dorme. Claro pra festejar "vitória" (como se a torcida entrasse em campo, jogasse bola e ganhasse os salários e luvas de valores absurdos de alguns jogadores), vale até depredar mais a cidade do que os supostos vândalos nas manifestações (mas daí o povo acha "normal" e a Globo fala em "paixão nacional"). Gritar "chupa adversário bundão fidapú" também ensina muito sobre como lidar com vitórias e derrotas na vida e mais ainda sobre respeito e espírito esportivo (que é a coisa mais legal que o esporte pode ensinar, quando ensina).
(Novamente, não tenho nada contra festejar vitória em futebol ou em outro esporte. Mas respeito é algo que a gente deve ter como pressuposto básico ao fazer qualquer coisa.)
Na recente final da Copa das Manifes... ops! das Confederações, fiquei contente, sim, com a vitória do Brasil. Mas pensava mais em quem estava apanhando e se ferindo do lado de fora do Maracanã por acreditar que pode fazer um país melhor para todos (independene de vencer campeonato) e não consegui deixar de perceber as comemorações efusivas como uma forma de escárnio contra quem luta para o Brasil ser vitorioso todos os dias, não mais do que a cada quatro anos em um campo de futebol.
Não sou contra a seleção, mas também não acho que ela seja "o Brasil". Por mim, se isso fosse possível, trocaria todos os títulos mundiais da seleção e dos clubes brasileiros por posições no topo dos rankings nos índices de desenvolvimento econômico, igualdade social, desenvolvimento humano, educação e saúde. Gosto da seleção, apenas dou mais importância para outras coisas. Não me sinto pessoalmente muito melhor e mais satisfeito quando "o Brasil" ganha uma copa, porque não me sinto ganhando nada. Mas me sinto bem quando vejo uma comunidade pobre desenvolvendo projetos culturais, quando assisto a algum filme nacional que me dá orgulho de ter sido feito aqui (mesmo quando mostra problemas do país) e não precisa ser dublado para a maioria da população... Mas vou ter mais orgulho ainda quando a TV passar filmes legendados e todos puderem acompanhar sem dublagem, porque vencemos o analfabetismo. Tenho orgulho dos cientistas brasileiros que fazem trabalhos significativos no exterior, mas anseio pelo dia em que cientistas estrangeiros vão querer vir trabalhar aqui. Acharia lindo o Brasil ter escolas internacionais de futebol, mas não que estas fossem uma das únicas esperanças para meninos pobres mudarem de vida (além de fazer música de qualidade discutível, com letras mal escritas e temas vulgares).
O futebol é lindo, e ficaria mais lindo como apenas mais uma cereja na cobertura de uma torta deliciosa, coberta de creme e de outras cerejas. Cerejas como vitórias em campos culturais, sociais, de promoção de igualdade, de respeito às diferenças (e mesmo a valorização delas!), vitórias em outros esportes, que meninos de todo o país teriam oportunidades de praticar. A cobertura do bolo seria um país onde se possa ser feliz e levar uma vida digna e relativamente despreocupada sem precisar estudar além do que se deseja ou gosta. Um país onde se possa ser lavadeira, técnico em refrigeração, mecanico de automóveis, operário da construção civil sem se sentir "menos que o dotô" e que estas pessoas possam viajar para algum lugar legal uma vez por ano, sem ter que contar os trocados todo mês para pagar o aluguel, sem ter certeza se vai conseguir no mês seguinte... Onde todo mundo que quer estudar numa faculdade ou mesmo ir além possam fazer isso, sem se sentirem "pessoas melhores" do que quem conserta seu carro ou leva seu lixo embora.
Todos que se sentem ganhando algo quando a seleção (ou seu time do coração) vence um campeonato têm meu respeito e até uma pontinha de minha inveja. Terão todos a minha admiração, também, se souberem respeitar quem não se sente tendo muito a festejar com isso e que quer dormir para trabalhar no dia seguinte.
Não julgo mal quem acha o futebol a coisa mais importante de sua vida, mas não quero ser julgado por fazer escolha diferente e por sonhar com coisas um pouco além disso, mais duradouras e, infelizmente, mais difíceis de alcançar.