quinta-feira, 18 de maio de 2017

O bode começa a sair da sala.


Ontem à noite, foi o susto. Fomos todos surpreendidos pelas revelações bombásticas de gravações e filmagens que mostram, de modo inequívoco, que o atual presidente da república e o senador Aécio Neves (aquele que, de pirraça por ter perdido a eleição, fomentou o golpe contra o governo Dilma) participaram de em esquemas de propinas envolvendo a JBS, dona da Friboi. Isso no Jornal Nacional, com o William Bonner fazendo cara de reprovação ao citar Aécio Neves e a ato falho referindo-se a Michel Temer como "ex-presidente".

Hoje pela manhã, muita gente comemora que "a casa do Aécio caiu" e o fato quase inegável de que o governo Temer não deve durar muito. Na maioria dos casos, isso parece mais uma satisfação da "sede de justiça" (leia-se: "de vingança") do que da necessidade de justiça de verdade. Tampouco é a fragilização do golpe. Talvez seja o contrário.

É mais ou menos evidente que a Globo deve ter essas informações desde março ou abril e resolveu divulgar agora, da forma bombástica com que foram veiculadas no JN. Isso não significa que, de repente, a Globo ficou "boazinha", democrática e honesta. Se decidiram jogar Aécio do barco é porque a situação dele estava insustentável e poderia inviabilizar as alternativas de continuidade do golpe. Além disso, talvez agora haja alternativas mais viáveis, do ponto de vista de quem capitaneia o golpe.

Quanto a Temer, faz tempo que está fazendo hora extra. É surpreendente que tenha durado tanto, eu achava achei que ele seria apeado em fevereiro. Não resta dúvida de que já cumpriu sua função de bode na sala: foi ruim o suficiente para quase qualquer outro conservador com mais carisma e apelo à mídia parecer uma maravilha.

Para o golpe, é provável que Aécio e Temer tenham se tornado empecilhos, por motivos diferentes. Anulá-los dá espaço ao "novo". Quem seria "o novo"? Dória? Moro? Luciano Huck? Um intervalo tampão com FHC de volta? Talvez Nelson Jobim? A ministra Carmen Lúcia? Não faltam alternativas aos conservadores.

Não há motivos aparentes para pensar que o golpe deixará de seguir seu curso. Certamente terá, no futuro, uma "roupagem" mais aceitável. Parecerá menos mau, mas não será menos golpe. Continuará sendo uma reação conservadora à eleição de um programa progressista que priorizava avanços sociais e redução das desigualdades. Apenas por isso é golpe. Se Temer tivesse mantido, de alguma forma, o programa de governo eleito, poderia se dizer que não foi golpe, já que haveria continuidade do programa e das propostas eleitas nas urnas. Mas, claro, a deposição se deu também, ou especialmente, para impedir a continuidade do programa eleito nas urnas. Um golpe não pode ser nada além de um golpe.

O golpe, portanto, continuará. Este "golpe no golpe" não é um "contragolpe", são as mesmas pessoas que já apoiam golpe a dar continuidade a ele. Nada do que se viu, por exemplo, aumenta as chances de Lula não ser inviabilizado como candidato nas próximas eleições. Pelo contrário, a derrocada de Aécio e Temer favorece a continuidade do golpe por esvaziar bastante o discurso de que a Lava Jato e a mídia miram só no PT. Isso facilita, ainda que talvez só um pouco, a prisão de Lula. Já consigo imaginar coisas como "Agora que o Aécio foi, só falta ele" e outras frases cheias de efeito e vazias de sentido, como bordões de torcidas de futebol.

O fato é que, se Aécio e Temer forem efetivamente processados, não se poderá mais falar em justiça unilateral, apesar da fragilidade da acusação contra Lula em termos de provas materiais (para se dizer o mínimo). Afinal, na prática, não há notícia de nenhuma prova material que justifique sua condenação.
Por outro lado, o governo atual fica enfraquecido (e, com ele, momentaneamente, o golpe). Abre-se, então uma janela de oportunidade a para pressão por eleições diretas.

Se tivesse que fazer uma previsão, eu diria que tudo vai se precipitar muito rápido agora, para não dar tempo aos movimentos sociais e às ruas de conseguirem avanços significativos que anulem os efeitos (atuais e futuros) do golpe. Do lado progressista, de oposição ao golpe, a pressa deve ser ainda maior, porque todo mundo sabe que essa janela de oportunidade será breve. É improvável, mas não impossível, que tenhamos eleições diretas antes de 2018. Toda a mobilização pelo golpe e agora deste pós-golpe se dá no sentido de inviabilizar a candidatura de Lula e vai faltar tempo hábil para isso, se as eleições diretas forem imediatas.

Ainda assim, é um momento em que a pressão popular pode fazer toda a diferença. Uma oportunidade preciosa, única e limitada de, além de reverter o golpe, devolver à população a percepção do valor da participação política.

É importante considerar que o roteiro do golpe não mudou. Continua a aplicação da doutrina do choque, tudo acontecendo muito rápido para evitar que a resistência se organize e para manter a população em geral achando que "algo está sendo feito para resolver os problemas". Um momento oportuno para o aparecimento de um "Salvador da Pátria", mas, felizmente para o país, não parece haver nenhum candidato colorido à disposição. Pelo menos não maduro o suficiente, não faltam projetos, ainda verdes, de candidatos coloridos.

Os próximos dias serão tensos e, para quem gosta de thrillers políticos, eletrizantes. É pouco provável que, no curto e médio prazo, deixemos de ter um governo golpista. É, contudo, muito provável que, pelo menso até 2018, tenhamos um governo mais "simpático", mais "aceitável esteticamente", mas com o mesmo objetivo de barrar e reverter os avanços sociais dos governos eleitos entre 2002 e 2014.

Quem (sobre)viver, verá.

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Atualização em 18.mai.2017 às15:45

Acabo de saber que o Tico Santa Cruz previu parte dessa história há quase um ano:
https://www.brasildefato.com.br/2016/07/01/psdb-pode-estar-preparando-o-golpe-dos-golpes/

sexta-feira, 3 de março de 2017

Por favor, deixem todas as luzes acesas.

Imagem e créditos: https://pixabay.com/en/stained-glass-colorful-glass-1589648/  

Desde o segundo semestre de 2016, o mundo viu Donald Trump, o caricato e eterno candidato à presidência dos EUA ser eleito com um discurso racista, xenofóbico e assustador para quem acredita em direitos humanos para todos os seres humanos. Estamos também acompanhando o avanço da extrema direita na França e uma guinada conservadora no mundo em ergal ou, no mínimo, naquilo que os grandes meios de comunicação nos apresentam como "o mundo".

Ao mesmo tempo, que parece haver uma crise moral sem precedentes na nossa história (pelo menos na história recente do mundo ocidental ou do mundo mostrado pela mídia). Apenas para dar um exemplo fora do Brasil, uma assessora sênior do presidente dos EUA diz que uma dada declaração não foi mentira, mas uma referência a "fatos alternativos". Para usar uma expressão do José Simão: tucanizaram a mentira.

No Brasil, tivemos a consumação do golpe jurídico-midiático e, desde então, vemos um retrocesso inimaginável em termos de direitos sociais e trabalhistas. Acho que não exagero ao dizer que corremos o risco de voltar à era pré-Vargas. Avançam as privatizações, inclusive do pré-sal, que ia sustentar a educação do país. Boa parte do primeiro escalão do governo foi citada em delações sobre esquemas de corrupção. Ministros delatados são empossados, um indicado para o STF faz uma "sabatina informal" em um jantar em um iate junto com senadores que deveriam julgá-lo como apto ou não a ser empossado como Ministro na mais alta corte do país. Tudo isso, naturalmente, em nome do combate à corrupção.

Em muitos sentidos, o Brasil parece uma caricatura do mundo. Uma caricatura deveria ser algo que não existe, uma metáfora, não mais que isso. O Brasil, contudo, consegue este exagero, por um lado, no que há de mais ridículo, mais hipócrita, na mentira mais deslavada do escárnio a céu aberto. Conversas telefônicas gravadas ilegalmente são usadas como argumento para derrubar seu governo, mas conversas de um senador, em que ele diz, abertamente que se deveria fazer um golpe para "estancar a sangria" de uma operação contra a corrupção e menciona que o Ministro da suprema corte que é relator do caso "não conversa com ninguém" são tratadas como anedota, mesmo depois que o avião com o juiz citado cai.

Por outro lado, também somos caricatos na torpeza e maldade (sim, maldade pura e simples, independente das causas). O fenômeno pode ser mundial, mas aqui aceitamos o inaceitável como preço para evitar avanços sociais, mudanças no sentido de mais igualdade e jusitça. Ou seja, pagamos caro para manter os problemas que nos afundam cada vez mais.

As pessoas da assim chamada "ala progressita" criticam a visão dicotômica imposta por setores à direita, essa divisão entre "nós e eles". Ao mesmo tempo, como num espelho, muitos destes mesmos críticos usam esta mesma lógica em um discurso que talvez devesse ter uma forma diferente. Na prática, não sei se poderia ser diferente de todo. Talvez por alguma limitação cognitiva, tenho enorme dificuldade em "ver o que há de bom" em o povo se manter ou voltar à miséria, quem afirma que pobres não chegam à universidade pública "por falta de mérito próprio", quem deseja a manutenção e o aprofundamento do "escravagismo assalariado" moderno, para manutenção de um sistema que beneficia apenas alguns às custas de submeter milhões à miséria, á fome, etc. Olha para a história da humanidade e me pergunto se alguém com um mínimo senso ético, uma visão mínima de justiça social, poderia ter visto algo de "bom" no nazismo, no fascismo espanhol, ou mesmo nas ditaduras militar militares da América Latina, durante a guerra fria.

Não se trata, aqui, de uma batalha entre "os bons" (os "progressistas do bem") versus "os maus" (os "homens de bem", ou, mais precisamente, "de bens"). Somos todos humanos, com falhas e virtudes. Contudo, mesmo que o bem possa ser relativizado, o mal que nossa sociedade enfrenta hoje chega bem próximo da beira do absoluto. A luz pode ter muitas cores, mas as trevas não têm cor nenhuma, são a ausência de luz. Às vezes parece que marchamos céleres em direção às trevas éticas, à ausência generalizada de senso de coletividade em todos os níveis, enfim, à barbárie do "cada um por si", que é o fim da civilização.

A quem acha que a situação não pode piorar, sugiro um exercício lúdico que, tenho certeza, terá resultados surpreendentes: basta anotar o estado daquilo que acha que não pode piorar e a data de hoje em um papel e olhar daqui a, digamos, seis meses ou um ano.

Enfim, há luzes de muitas cores de muitos lados e, de um lado, há apenas escuridão. E estamos andando para ela.

Luzes coloridas permitem ver o mundo de muitas formas diferentes.

Por favor, deixem todas as luzes acessas.