quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

a cordinha, o inferno e os outros

Interrompemos nossa programação normal(?) para um anúncio não-comercial.

Este papo de que há coisas que ninguém tira, que a garra, a "essência", a vontade de viver, "o sonho", etc. são coisas que nos definem... em mau português, digo que este papo é todo furado. Há horas em que qualquer ser humano (o que eu às vezes acho que não é todo mundo) queria mesmo era mergulhar num vácuo-sono-eterno.

Não, não, nada de depressão, nada de tendência suicida e, especialmente, nada destes diagnósticos menos bem embasados que filosofia de boteco. A coisa é bem mais simples e, ao mesmo tempo, mais profunda. Tem hora em que simplesmente a gente conclui que não vale a pena. Não é querer morrer, é achar que era melhor não ter nascido ou, melhor ainda, "já deu, tou satisfeito, fecha a conta, passa a régua". Mas, claro, nenhuma pessoa "decente" e minimamente saudável quer causar tristeza nos outros. Então, o melhor a fazer é seguir pagando a prestação do lote no reino dos céus, "com fista panorrámica parra o chardim do Êden", como no sermón do padre alemôn.

Tá, eu sei que ninguém mais conhece "a sermôn do patre alemôn". Tudo bem, é uma piada velha e que perdeu a graça há anos. Ou eu perdi a graça dela, sei lá. Vai ver que fui eu que mudei, envelheci. "Como o vinho", me disseram uma vez, "melhor com o tempo". Lembro que respondi: "só tem que tomar cuidado pra não virar vinagre". Não era piada, mas quase perdi mais de um amigo por causa destas coisas.

Vale tudo para não aborrecer os outros, né? Principalmente seguir na mesma vidinha sem perspectiva de conseguir fazer coisa alguma que dê algum tipo de satisfação. "Ah, mas viver é tão bom e não custa nada", dizem os outros. "Os outros", este massa amorfa e pouco concreta, e ao mesmo tempo tão... presente. Alteridade?  humpf. Um conceito abstrato provavelmente projetado, entre outras coisas, para fazer o indivíduo se sentir culpado de estar (perdão) de saco cheio. Culpado por querer puxar a cordinha. "Motorista, dá pra me deixar na próxima esquina?" Mas o maldito motora anda mais três quarteirões morro abaixo e morro acima pra não parar fora do ponto. E daí, você já desistiu de descer, porque lá fora tá chovendo ou porque vc tá com preguiça de caminhar tudo de volta e decide esperar o busão passar ali na volta. 

"Os outros" são a outra metade da síndrome de Estocolmo. A OUTRA metade, que não sou eu. "Queria fechar a minha conta, mas não posso deixar o pessoal sozinho no bar".

Um dos problemas de falar sozinho é que a gente sempre acha que tudo que a gente diz é óbvio. "Síndrome de Estocolmo", por exemplo, não é óbvio. É um termo usado para descrever o apego que reféns às vezes desenvolvem pelo sequestrador. Mas também pode ser o carcereiro, o estuprador, o chefe... pode ser qualquer um que prenda a pessoa em algum lugar contra a vontade, abusando dela ou não. Não sei se na Suécia tem mais disso. Uma vez me disseram que as pessoas se matavam mais na Suécia porque todas as necessidade básicas dos cidadãos eram supridas por um tipo de social-democracia e as pessoas ficavam entediadas pela falta de desafios na vida. Ou seja, ter tudo que se deseja gera tédio e leva ao suicídio. Um extensão deste pensamento seria que, num lugar assim ser sequestrado e tomar uns tapas (ou quem sabe ser abusado) seria uma quebra de rotina que poderia ser desejável. Fico imaginando se o idiota que inventou estas coisas ganhou dinheiro pra isso. Talvez estas besteiras fossem algum tipo de propaganda eleitoreira nada sutil para dizer que as mazelas do país faziam daqui um lugar melhor do que "lá". Seria o caso de se agradecer a um sistema que evita tantos suicídios por tédio com relação à vida, se o número de homicídios neste não superasse o de suicídios naquele.

Enfim, "os outros": há quem diga que são um mal necessário. Talvez sejam necessários, nunca saberemos, porque são inevitáveis. E o que é inevitável não é bom ou mau, tá aí e pronto. O Sartre dizia: "O inferno são os outros", o que deve soar muito mais bonito e profundo em francês. É, sem dúvida, uma ótima frase de efeito, boa para citar em contextos como este e parecer erudito. Tentemos, apenas como exercício teórico, equacionar as duas frases: "O inferno são os outros" com "Os outros são um mal necessário", resultando em "O inferno é um mal necessário". Interessante.

Este exercício pode ser estendido a outras pérolas da cultura nacional(ou mundial? ou humana?): "Mas, o que os outros vão pensar/dizer, se souberem disso?" viraria "mas o que o inferno vai pensar/dizer, se souber disso?" Imagino o inferno todo escandalizado, chocado até, porque algum pobre pecador foi, de fato muito pecador (em sua própria concepção) e, talvez por isto, tenha até ficado menos pobre e/ou menos infeliz. (Claro que, se pecar e continuar pobre, obviamente, os outros vão pensar mal dele até no inferno.)

Ou, ainda: "...não tou nem aí, os outros não pagam as minhas contas" viraria "...não tou nem aí, o inferno não paga as minhas contas". Sim, meu filho, é verdade, o inferno não paga suas contas, mas cobra que é uma beleza. Os outros também, o que corrobora a frase do Sartre, que era estrábico, mas não era bobo.

No limite, usando a teoria cuja veracidade acabamos de verificar, quem decide não fechar a conta por causa dos outros confirma uma outra pérola do conformismo universal: a de que todo mundo acaba tendo o que merece. Todas estas seguem na lógica do "tá ruim, mas tá bom", do "tá tão ruim que tou com medo que piore" ou, e esta é uma das uma das piores (por favor, tirem as crianças da sala): "...se tá no inferno, aproveita e abraça o diabo".

Não, não, gente, não quero abraçar o diabo, apesar de estar cercado de "outros". Tava mais a fim de uma saída "à lá" Capitão Nascimento: "01, pede pra sair!" Mas, infelizmente, esta opção não está disponível na versão demo do joguinho* e não vou ser eu a pagar pra entrar nesta coisa só pra ter o privilégio de pedir pra sair.

Mas existe um consolo. Questionável, mesquinho, egoísta, e nada construtivo, mas, ainda assim, é um consolo. Eu também sou "os outros" deles. Tá, não chega a consolar de verdade, mas dá pra passar o tempo retribuindo. Até que ELES queiram puxar a cordinha. Ou será que todo mundo já tá querendo, mas ninguém quer ser o primeiro?

Seguimos, agora, com nossa programação normal.

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* "o jogo da vida", patrocínio da Usina de Clichés, onde seu lugar-comum é mais comum!.

2 comentários:

Sandra Regina disse...

Difícil digerir! Ácido e corrosivo... Fico aqui pensando na cordinha.
Beijo

AnaCris (Nika) disse...

Eu deixo a cordinha pros outros... inferno ou não. e vou esperar, sentada na janelinha, que se enforquem logo. Ai, como eu estou 'os outros' hoje! rsrs