sábado, 1 de janeiro de 2011

A Estréia

Texto já publicado em outro blogue. Sua "estréia" se deu há três anos, nos Ecos Diversos. Aqui, portanto, uma re-estréia. Um bom ano de 2011 a todos os meus (dois? três?) leitores!



A ESTRÉIA

Na platéia, figuras imponentes dos três poderes, representantes do clero, construtores, empresários, banqueiros, oficiais das três armas e da polícia militar, delegados, tabeliães, professores, balconistas, garçons, cozinheiros, alguns operários, o menino do farol com seus chicletes, o guardador de carros com seu paninho sujo e outros dignos representantes da sociedade. Conversam animadamente, respeitando os costumes e os limites sociais adequados, mantidos da forma mais conveniente. “Conversa-se com quem se tem assunto.” Nada faz mais sentido nesta data, ao mesmo tempo solene e festiva.

Há grandes expectativas e o otimismo para o futuro é contagiante. O futuro é lindo, visto daqui!

O país em franco desenvolvimento. Com redução dos impostos e dos juros, teremos crédito barato, o consumo em alta, a inflação controlada e baixa. A produção industrial estará em crescimento, a poupança, em ascensão e as exportações crescerão. A reforma agrária trará a maior produção agrícola da nossa história. A igualdade social será construída sem prejuízo para os mais abastados. Todo cidadão terá tudo que precisa para viver com dignidade e talvez até um pouco mais. A saúde e a educação públicas atingirão níveis de excelência, patamar a ser alcançado pelo setor privado. Todas as formas de crime e de injustiça serão abolidas. As drogas, o aborto, a corrupção, a pobreza, a inveja, a ira, a vaidade, o ódio, o adultério, desaparecerão sem que medidas mais duras precisem ser tomadas. Criminosos, terroristas e conspiradores terão consciência do mal que fazem à sociedade, entregarão suas armas e irão espontaneamente viver como monges reclusos. E serão felizes.

O momento se aproxima. Primeira chamada, segunda chamada, terceira chamada, as luzes se apagam. Contagem regressiva. 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...

As cortinas se abrem. Sobre o palco ao fundo, há um espelho enorme. Em frente a ele, em pé, um homem pequeno, franzino e nu, cobre os olhos e os genitais. Não tem cabelos, não é jovem, nem velho. A cabeça é grande e o corpo todo tem uma aparência de secura áspera.

Aos poucos, ele se encolhe até encostar a cabeça no chão, sem descobrir o rosto e os genitais. Treme e soluça, como se tudo lhe faltasse. A luz ilumina a platéia silenciosa, estática.

No silêncio há um arrepio, agudo, gelado, aquela fração mínima de tempo que se demora a perceber o corte de uma navalha. E o silêncio se dilata.

O corpo, jogado ao chão, soluça convulsivamente. Faltando-lhe mais mãos para se cobrir por inteiro, mantém os genitais e os olhos cobertos.

O espelho agora reflete cada espectador, individualmente. Por um instante mágico, toda hipocrisia, toda mentira, toda vileza, toda iniqüidade, surgem monstruosas, caricatas, e cada um vê a si mesmo, seus pecados, seus crimes, suas máculas, suas omissões e mentiras confortáveis. Depois, vêem-se em seus grupos. Logo, num quadro bizarro, todos reconhecem na podridão alheia as suas próprias.

O público permanece imóvel como um suspiro preso, o tempo suspenso, que não é agora.

Ouve-se o ruído de pés correndo, pesados. Logo se percebe o pequeno homem a correr a esmo pelo palco. Quando encontra o espelho, ataca-o às cabeçadas e com os cotovelos, pés, joelhos, ombros, com o corpo todo, sem nunca descobrir os olhos ou as virilhas. Corta-se, sangra e continua a golpear o ar, pisoteando os cacos, mesmo com o espelho já completamente destruído. Seus soluços, quase infantis, vão sumindo enquanto ele se enrola lentamente no chão, no meio exato do palco. Finalmente, resta apenas o ritmo da respiração ofegante.

Em silêncio, fecham-se as cortinas.

O teatro suspira em uníssono. As expressões se relaxam, como sob a brisa fresca ao fim do dia quente.

Agora tudo está mudado. O que passou, passou. Sem ressentimentos, é hora de reiniciar!

Como se ensaiada, arrebenta uma onda de aplausos, palmas, assobios!

Todos gritam seus votos e riem e choram e se abraçam, até que as lágrimas secam sobre os rostos cansados de sorrir.

Voltam, então, para suas casas, suas vidas.

O ano novo estreou.

3 comentários:

vieira calado disse...

Há muito tempo que não visitava os seus blogs.

Mas vale tarde que nunca!...

Um forte abraço

Adriádene disse...

Contagiante...

Anna Amélia de Faria disse...

Querido, bom te reler.
bj